Desta vez quero fazer um registro sobre uma peça que me chegou às mãos pra uma "reforma". Devido a uma série de contratempos somente há poucos dias pude terminar o trabalho.
Por um descuido não fiz fotos da faca como estava antes do trabalho. Por sorte, o atual proprietário tinha tais fotos e posso mostrá-las a vocês. Posteriormente fiquei sabendo que esta peça esteve pra ser jogada no lixo... Uma grande pena seria!!!!
Ao começar a "reformar" a faca, os seus detalhes me chamaram a atenção!!! Tanto, que resolvi escrever sobre ela e fazer fotos com essas radidades literárias que me foram presenteadas pelo Amigo Roberto Lisboa a quem fico muito grato.
Bem...
Trata-se de uma faca full tang integral, com gavião "puxado" em noventa graus e, ainda, com double taper. Todos termos modernos da cutelaria atual. Dá-se a entender que o autor da peça seja comtemporâneo nosso e extremamente sintonizado com o que se faz hoje em termos de cutelaria e, particularmente, nas "facas integrais". Nessa faca o único indício de sua "idade" é a ponta com um clip e formato de lâmina bem característico das Adagas Mediterrâneas nas quais, eu creio, o forjador se inspirou.
Do criador desta faca apenas sei da sua marca que, apesar da oxidação em que se encontrava, procurei preservar:
Quem já forjou integrais sabe como é difícil e quanta habilidade requer "puxar" um gavião em 90 graus. Some-se a isso se full tang (onde a silhueta do cabo é composta por metal) e também a presença de double taper (onde tanto a lâmina quanto a tang afinam progressivamente em direção às respectivas pontas). Em resumo, é uma faca das mais difíceis de fazer, em termos de forjamento. Procurei saber a "idade" dessa peça junto ao seu proprietário que, desafortunadamente, já a recebeu de outra pessoa e esta de um terceiro. Ninguém soube precisar a época da sua fabricação. No passado alguma manuntenção espúria juntou aço na parte da tang alijando a peça do seu formato original. Tive que improvisar pra dar um formato que achei que caberia com este tipo de faca.
Como o dono pediu pra que a peça fosse "reformada" pra lida optei por usar parafusos de aperto rápido aliados com talas de jacarandá da bahia. Este sistema tem a vantagem se ser possível utilizar outro par de talas. Basta folgar os parafusos e fabricar um novo par e fixá-los novamente, dando uma roupagem "nova" à peça.
Outra questão que me causou espécie foi o fato dessa lâmina ter sido feito com "têmpera seletiva" e apresentar um desenho "flamejado" em parte da lâmina. Apesar de ser um conhecimento antigo visto principalmente em espadas japonesas, modernamente a têmpera seletiva com argila é um item de muito requinte na cutelaria custom. O terço anterior (perto do gavião) é mais espesso que o restante da lâmina e não tem têmpera. Creio que isto se deva ao "costume" de usar esta parte da faca pra cortes mais pesados e o restante pros mais delicados. Pelo requinte da peça, acho que o cuteleiro deixou esta parte deliberadamente mais "macia" visando usá-la pros golpes mais fortes em material resistente onde seria preferível amassar o gume que quebrá-lo.
Em resumo... o que seria apenas uma reforma foi uma "aula" de cutelaria ancestral onde se demonstra que
as nossas raízes neste ofício vem de longe.... muito longe. Nume peça tão antiga e "desvalorizada" encontram-se elementos que, mesmo hoje, a classificariam como uma ótima faca integral, modernamente falando.
Têmpera seletiva, double taper, integral full tang são termos técnicos estudados extensivamente nos dias de hoje e suas aplicações ainda geram controvérsias de implementação e uso. Não são técnicas fáceis de dominar.
Felizmente, os Mestres Cuteleiros que vieram antes de nós, mesmo sem todo o arsenal de ciência e tecnologia de agora, tinham então, a habilidade e experiência que hoje nos faz tanta falta...
Fico extremamente feliz que esta peça tenha me chegado às mãos pois trouxe ecos de um passado onde homens habilidosos sabiam exatamente o que fazer com suas forjas, bigornas e martelos. Eles nos deixaram um legado indelével que, mesmo em partes de quebra-cabeças, nos indica o que um artesão pode produzir imbuido do espírito da Arte.
Então,
ao final,
eu, Serapião de Garanhuns,
sutentando uma fé inabalável na sobrevivência da alma;
Saúdo o cuteleiro "B", onde quer que esteja,
por ter deixado pra nós este belo trabalho!!!
Desejo que, num distante futuro,
algúem possa encontrar uma de minhas peças
e admirá-la como também o fiz com a sua.
Que assim seja!!!
Aos amigos,
Obrigado por lerem!
Muito bacana ver este pedaço de história brasileira ser resgatado.
ResponderExcluirBom trabalho Serapião!
Obrigado Miranda!!!
ResponderExcluirEstou tentando descobrir o nome desse artista... Até o momento só sei que desencarnou há décadas e que fabricava facas sempre nesse formato em diversos tamanhos. Ele era da região de minas.
Um abraço.